Tensão e Contradição

José Marcelo Espírito Santo
Arquiteto e Professor de História da Arte da
Universidade Federal do Maranhão

Na produção de um artista contemporâneo podemos captar aquela fração do desconhecido presente em sua obra que é capaz de desmantelar o senso comum, fomentando assim a discussão artística sem perdermos de vista sua força poética individual. Raimunda Fortes apresenta essa característica e seu trabalho se afirma como um testemunho de alto teor pessoal, refletindo a noção de “si mesma”, que é o instante no qual a artista, entregue ao desconhecido, se funde ao mundo e o recria.

A exposição Tensão e Contradição apresenta a mesma linguagem abstrata da primeira individual da artista, Sentimentos e Símbolos, de 1997. Porém as mostras revelam diferenças na abordagem e apropriação do universo plástico pela artista.

“(…) arte como redenção do que conhece – daquele que vê o caráter terrível e problemático da existência, que quer vê-lo, do conhecedor trágico.

A arte como a redenção do que age – daquele que não somente vê o caráter terrível e problemático da existência, mas o vive, quer vivê-lo, do guerreiro trágico, do herói. (…)” (Friedrich Nietzsche, 1871)

Entendemos assim a relação sentimento e símbolo plástico da primeira exposição, que apresentou um conjunto de obras com cores primárias suaves, em grandes extensões não contrastantes e fundo negro.

Tensão e Contradição, porém, apresenta elementos sobre o fascínio da arte sobre o homem, preocupações agora não só da artista plástica, mas também da webmaster, programadora visual e pesquisadora em História da Arte.

A contradição como uma das bases do movimento interno da própria realidade, numa resposta da artista sobre como a arte pode de alguma forma equilibrar o lado racional (o estado da razão) e o lado sensível (a dimensão espontânea e emocional) do homem. A arte como maneira de fundir as duas dimensões da natureza humana, educando as pessoas desprovidas de um ou de outro temperamento a se tornarem mais integrados. “(…) apenas a percepção do Belo faz do homem algo inteiro, porque ele coloca em harmonia ambos os lados da sua natureza (…)” (Schiller), ou seja, só se transforma em racional um homem sensível, tornando-o primeiramente estético.

Esta é a resposta da artista para a tensão possível de um mundo desesperador sem a ilusão da arte. O artista transfigura o mundo, dota-o de sentido e beleza, tornando-o assim passível de ser vivido.

Raimunda Fortes apresenta obras de dimensões superiores às anteriores (perdeu-se o contato com o cavalete), abandona o fundo negro e utiliza, instintivamente, as cores do “sentimento essencial” de Wassily Kandinsky. Em quatro combinações de cores quentes e frias, duas a duas, Kandinsky revela o preto e o branco como “as duas grandes possibilidades de silêncio, morte e nascimento”, o amarelo (“a típica cor terrosa”) e o azul (“a cor celestial”), o “mórbido” violeta e o “poderoso” laranja, o “determinado” vermelho e o verde (“que se auto-satisfaz”).

A arte contemporânea possui uma geração que se recusa a operar fora de si própria, mas que assimila seu papel e age tentando revelar o que de melhor tem a oferecer. O Maranhão também possui este grupo de artistas, cujos próprios limites ainda não se conhecem. Artistas sintonizados numa espreita do futuro, à busca de uma saída para uma instabilidade do presente, artistas calcados no presente, revelando e questionando seu meio, artistas indagando algo fixado num possível ou mistificado futuro, artistas que como Raimunda Fortes tentam expandir com agudeza pacienciosa suas possibilidades.

A arte nas décadas de 60 e 70 proclamou sua própria morte. A obra apresentou-se como “xeque-mate” ao próprio sistema da arte. A que no Brasil denominou-se “Geração de 80” apresentou uma reação ao período anterior, reivindicando o direito a um jogo mais livre, utilizando-se de um repertório herdado da própria Historia da Arte e produzindo obras que falavam de outras obras, como metáforas de metáforas. Hoje os artistas voltam a buscar os limites da arte, como a 20 anos atras, porém sem o comprometimento com citações a um estilo ou técnica, como ocorreu com a geração de 80.

A quem, então, fala esta nova geração ? A relação produtor e fruidor da obra, existente desde a Renascença ate recentemente se dissolveu. O público agora se apresenta como uma multidão anônima, como o do cinema, da literatura, do disco, presente não mais no ateliê do artista, mas sim nas grandes exposições internacionais (que muitas vezes são as únicas a conseguir o interesse da massa) ou, que via Internet, navega nas galerias virtuais e páginas pessoais dos artistas.

As obras de arte, frente a este sistema de informações que exige efeitos imediatos, mensagens sintéticas e facilidade de circulação, tornam-se obscuras e tortuosas. Em compensação, uma vez postos em movimento podem continuar produzindo novos significados, por séculos. Uma solução dos artistas, a meu ver fácil para este problema, foi conferir à arte conteúdos elaborados a partir de seu exterior, como citações a minorias culturais, políticas e sexuais, que agora passam a reivindicar um acesso a arte.

Raimunda Fortes, se por um lado ainda resiste em sua participação pessoal nesse novo meio de divulgação, não opta pelo caminho fácil de citações externas ao processo criativo e artístico. Ao abordar novamente a linguagem abstrata, crescendo suas telas ou agregando elementos a sua superfície, insiste no eterno exercício da busca da expressividade interior do artista, traduzida em cores e formas visuais não figurativas.

As interpretações tem sempre uma dose de arbitrariedade. Porém a artista possibilita com seus quadros a dose de arbitrariedade necessária para que determinado período “invente e descubra” os artistas de sua geração, nas marcas de sua própria sensibilidade.

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